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Textos e contos

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Na cabana, junto à praia...

 

Era o irmão de uma grande amiga e tinha acabado de chegar de Caracas. Quando o conheci pareceu-me interessante, era culto e conversador, mas havia na sua expressão qualquer coisa pungente, uma tristeza escondida que lhe escurecia o semblante.

 Simpatizamos um com o outro. Ele achava graça à costureirinha da aldeia que também era bibliotecária e encarregada da cooperativa do lugar. As suas visitas não se fizeram esperar e passaram a ser frequentes. Como quem não quer a coisa, aparecia lá em casa apenas para dizer olá, mas acabávamos por ficar horas esquecidas na conversa.

-Gosto muito do teu irmão… - dizia eu à minha amiga, com a esperança de que ela pudesse fazer de Cupido. Pouco a pouco comecei a desejar que ele viesse, olhava ansiosa para a estrada para ver se via aparecer o seu Volkswagen preto.

Tudo piorou quando ele, se não me encontrasse em casa, começou a meter debaixo da porta uma folha com um poema, ou parte de um poema.

Cada dia me sentia mais atraída por ele, era tão romântico, tão delicado, tão respeitador…. Admirava o homem que nunca fazia provocações, que nunca tentava aproveitar-se, nem um bocadinho…era tão diferente dos outros, sempre prestes a roubar qualquer coisa, a tentar aproveitar o momento… 

À medida que o tempo passava começava a ficar impaciente, não chegava só o romantismo e o respeito extremo. Algo mais devia acontecer! Numa noite, em casa da irmã, durante uma das nossas intermináveis conversas, eu só pensava que ele devia dar-me um beijo. Desejava tanto que isso acontecesse! Mas ele não se decidia e então fui eu, fui eu que lhe roubei um beijo.

Mais valia que não o tivesse feito. Ele ficou tão ofendido, tão consternado, que eu quase morri de vergonha. Senti-me uma descarada, e na verdade até fui, mas alguém tinha que romper o gelo!

Desapareceu durante algum tempo, deixando-me afogada de arrependimento e vergonha.

 Mas, algum tempo depois, encontramo-nos num baile de garagem e fizemos as pazes e depois de um gin tónico, ele dançou comigo. Abraçou-me e até me beijou à frente de toda gente.

 Então eu pensei: agora sim, a coisa vai andar! Mas não andou. Algumas amigas presentes na festa aproximaram-se de mim: - com que então…quem havia de dizer! Dizem que ele é maricas, (nos anos 80 esse era o termo, não se usava gay, e a maior parte deles não tinha saído do armário. Ainda) mas pelo visto isso não passa de mexericos…namoras com ele? Eu não sabia se namorava, mas lá que alguma coisa tinha acontecido, tinha!

 Eu sentia-me eufórica, cada dia mais ansiosa por voltar a vê-lo cada gesto de carinho por parte dele era como uma massagem no meu coração. Mas não houve mais beijos e ele demorou a voltar. Mas era algo tão visceral da minha parte! Sempre que eu falava sobre ele com a irmã, a minha amiga, ela era evasiva, mudava de conversa e pouco ou nada dizia sobre ele.

Depois dos beijos dados na festa, passou-se algum tempo até que eu voltasse a encontrar poemas, sempre escritos numa bela caligrafia e assinados por ele, debaixo da minha porta.

Entretanto chegou o momento em que ele devia regressar para a Venezuela e, por pura coincidência, eu tinha que voltar também, por motivos de saúde. Eu sofrera derrames pré-retinianos que me estavam causando cegueira, era um caso sério e raro para alguém da minha idade. Embora os tratamentos realizados pelo Dr. Alípio, o melhor oftalmologista do Funchal e que, dito de passagem, fez o melhor que era possível fazer, eu pretendia efectuar uma consulta com o Dr. Barraquer, o mais famoso oftalmologista desse tempo. Ele tinha uma clínica em Bogotá, e a minha família já tinha feito marcação. Eu tinha mesmo que ir.

 Depois desses derrames nunca mais pude ver uma linha direita, as linhas estavam sempre tortas, assim como a minha vida.

                                                                          

Apetrechada de razões, lá fui eu, de regresso à Venezuela. Pensar que iria encontrar o meu amor quase platónico nesse país, minorou a angústia de deixar a minha ilha.

Atrevida como era, precisava vê-lo e para isso tinha que arranjar um pretexto para ir a Caracas. A melhor justificação que consegui foi uma consulta com o melhor oftalmologista da capital, antes de ir a Bogotá. Se este médico, que era uma sumidade naquele país, considerasse que o meu caso não tinha cura, nem valia a pena ir à Colômbia.

 Senti-me justificada para telefonar ao meu amor platónico. Pedi-lhe que me recomendasse um hotel decente para eu passar a noite, uma vez que teria de ir de véspera. A consulta era às nove horas da manhã e chegar a tempo desde a pequena cidade do interior onde viviam os meus pais, que distava uns 350 quilómetros da capital, era impossível. Ele aceitou com agrado, até com alegria, segundo me pareceu. Reservou um quarto num hotel relativamente próximo da clínica onde eu devia ir.

E lá fui eu para a capital, muito mais entusiasmada pelo meu encontro, do que preocupada com a minha falta de visão. No hotel, estava tudo em ordem, já pago e tudo. Enquanto esperava, preparei-me para o que desse e viesse, aperaltei-me toda. Tinha ficado combinado que ele passaria a buscar-me para irmos dar uma volta pela cidade e terminar a noite no piano-bar de um grande amigo dele.

Em realidade passeamos pouco pois ele tinha pressa de chegar ao bar. O piano-bar era excelente, requintado, com bom ambiente e o amigo dele, filho de espanhóis, muito simpático. Muito jovem e belo também. A barra do bar rodeava o pianista que tocava música pedida. O T. pediu uma música romântica, já não me lembro qual era, mas julguei fosse dedicada a mim.

Tudo corria às mil maravilhas!  Boa conversa, bom ambiente, boa música…

Mas a bebida causou-lhe um efeito estranho. Ficou macambúzio, deprimido, começou a chorar, a dizer coisas incoerentes… Eu não entendia o que se passava e o amigo tentava acalmá-lo, mas parecia ficar cada vez pior.

Já não sabia o que fazer da minha vida. Ele tinha um balão de whiskey que apertava cada vez com mais força, com intenção de o estilhaçar nas mãos, eu tentei de todos os modos tirar-lhe o copo, mas senti que ele começava a ceder, o copo, e tive medo de ferir-me. Então dei-lhe um forte estalo e, surpreendido, largou o copo. Olhou para mim horrorizado e saiu porta fora…

E agora, que faço eu nesta cidade que mal conheço, a esta hora da noite? – interrogava-me.-

O jovem espanhol tranquilizou-me: - Deixa lá, não te preocupes, eu levo-te ao hotel - E assim o fez.

Quando cheguei ao hotel, lá estava o T. Pediu desculpa… e eu, ok, tudo bem. Esqueçamos. Pensei que ia ser uma noite decisiva, e na verdade foi.

Poucos minutos depois ele estendeu-se na cama e, acto seguido, começou a roncar como um motor. Eu, bem à beirinha da cama, tentei dormir, mas não consegui. Pela manhã, bem cedinho ele acordou, olhou para mim como um zombie, viu que me mostrava feliz, satisfeita, como se tivesse passado a melhor noite da minha vida.

- O que é que aconteceu? - Perguntou.

Decidi ser má. Sorri beatificamente e não respondi imediatamente.

- Mas diz-me – Parecia aterrorizado - aconteceu alguma coisa? Diz-me!

Mas eu continuei com o meu ar feliz…

- Não te lembras? Não me digas que não te lembras de nada… - respondi maldosamente.

Ele desesperou

- És igual a todas! Pensei que eras diferente! Aproveitaste-te de mim!  Não tinhas esse direito! -E saiu porta fora, com a roupa amarrotada e os óculos tortos encavalitados no nariz, e quase posso assegurar que tinha remelas e restos de baba nos cantos da boca.

Fui à consulta, tive que fazer dilatação em ambos os olhos, e isso resultou numa tortura quando saí à rua sob o sol incandescente do meio-dia. Estava como cega e a luz fazia doer imenso. Senti medo, não conseguia orientar-me.

Apanhei um táxi e dirigi-me ao hotel. Eu sabia que estava reservado por dois dias, embora eu só precisasse de uma noite. Estendi-me na cama e decidi esperar até que o efeito do dilatador passasse a minha visão voltasse ao normal.

Ainda estava no meu descanso quando senti a porta do quarto abrir-se, levantei-me logo, pronta a dar explicações, só podia ser T. E era. Mas não vinha só, acompanhava-o um jovem moreno com ar de morador de rua. Olharam para mim, olharam um para o outro e, desorientados, escapuliram-se corredor fora.

 Eu agora já via melhor, e não era só dos olhos…

Saí daquele lugar e corri pelas ruas até chegar ao piano-bar. Por sorte estava lá o rapazito. Quando me viu chegar aproximou-se de mim e sentámo-nos os dois a conversar.

- Já percebeste o que aconteceu com o T, estou a ver… olha, aquela cena de ontem foi por minha causa. Nós tivemos um caso, eu era muito jovem, tinha catorze anos e muita curiosidade, ele não me deixava em paz. Enfim… coisas da adolescência, ao menos para mim. Mas para ele foi um caso sério: apaixonou-se. Não havia maneira de o afastar, e eu não queria que a minha família e amigos percebessem, sabes como é… Depois encontrei uma miúda por quem me apaixonei e ele não suportou.

Foi embora para Portugal, julgo que na tentativa de me esquecer. Agora que regressou tem-me rondado outra vez, todas as noites aparece cá, com ar de cão abandonado. Suplica… Ontem não te deste conta, mas eu disse-lhe algumas palavras, disse-lhe que me esquecesse porque vou casar em breve com a mulher que amo. Daí a figura que ele fez …

 

Admirei aquele rapaz que se abriu comigo com confiança, que falou de coisas tão íntimas que eram tabus para a época. Nos anos 80 pouco se falava de homossexualidade, nem se aceitava com a mesma naturalidade de hoje.

Foi tão querido que me levou até a estação das camionetas e me fez companhia até sair no autocarro. Durante a viajem muito pensei no assunto. Afinal, que parvoíce tinha sido a minha? Como nunca sequer suspeitei, apesar de ouvir alguns zunzuns…

Como me apaixonei assim? Vendo bem, ele nem era tão interessante… era escuro ,esverdeado, magro como um pau de virar tripas, usava uns óculos que mais pareciam o fundo de uma garrafa, o nariz parecia o bico de uma águia… sou mesmo palerma!

Mas o que não lhe perdoo foi ter-me enganado, descobri que os poemas dele não eram dele, eram apenas alguns versos da canção de José Cid, na Cabana Junto à Praia… Que idiota que eu fui!  Esse dia jurei nunca mais me apaixonar por um gay!

Já sentiram aquele desejo de deixar tudo para trás, largar tudo e todos e partir à aventura? Embarcar num comboio, onde não existisse um lugar nem tempo, para chegar. O que importava era a viagem. Deter-se em lugares improváveis, ficar ou partir quando apetecesse…

Regressar não tinha importância. Contava apenas o andamento, as paisagens e os lugares que se observam através da vidraça da janela, que passavam rápidas, como uma miragem.

Ver apenas rostos desconhecidos, rostos novos, perscrutar as sensações que nos transmitem.

Assentados no banco à nossa frente, ou ao nosso lado, alguns dão dois dedos de conversa, palavras banais, para de seguida encerrar-se, mudos, no seu mundo interior.

Ou um outro começa a falar, por imp impulso, ,  desabafar com um desconhecido, não importa quem,  fal. da dor que lhe aperta o peito, a mágoa de um amor perdido, ou um ódio antigo que precisa verbalizar, Precisa deixar escapar as palavras que arranham na garganta e poder enfim, romper com o passado.

Não quer conselhos nem compreensão, quer apenas ser ouvido e, como se estivesse num confessionário, abre a alma e sai aliviado, sem olhar para trás e sem cumprir a penitência.

Há outros, os silenciosos, como esta mulher sentada ao meu lado, para a qual parece que não existem palavras. Olha pela janela e, em jeito de despedida, apenas pressentimos um murmúrio entrecortado, duro como uma rocha, um acenar frio, como quem lança uma flor sobre um cadáver.

Recosta-se no assento, aliviada, com os olhos apertados, com o anseio de pôr um ponto final numa história. Ao iniciar a marcha do comboio surge um nervoso miudinho, um leve tremor das mãos e o medo por detrás do olhar quieto.

Talvez seja ela quem treme, ou talvez seja a minha imaginação e o tremor que sinto nas mãos, não seja dela, mas meu.

O que a move? Que vida deixou para trás?

Entrei num comboio sem destino nem nome, embora pudesse chamar-se Reencontro. Uma viajem desejada, mas sempre adiada. Havia sempre um obstáculo. Entre o desejo e a necessidade de partir, havia o medo. O medo de ir só, apenas acompanhada pela minha história. Apenas eu e a minha história.

Vivi com todos os medos. Todos os medos. Medo de falar, medo de sentir, medo de não ser capaz de sentir, medo de estar certa e medo de estar errada. Medo de ferir e medo de ser ferida. Medo da injustiça. Medo de ser infeliz e, ainda mais, medo de ser feliz, porque a felicidade, por vezes, vem com a máscara da culpa.

É sempre o medo que nos coloca os ferrolhos que arrastamos vida fora. É ele que nos impede libertar-nos e ir à procura de novas formas de vida, o medo da incerteza.

Preferimos agarrar-nos ao que temos, mesmo quando o que temos seja a certeza do que não queremos.

A vida é um sopro, uma aragem. Sem nos darmos conta iniciamos uma viajem, saltamos muitas paragens, mas essa é uma viajem na qual não tivemos decisão própria. Nela não admiramos a paisagem nem os lugares por onde passamos, fomos arrastados pelo destino e tínhamos um papel a cumprir. Colocamo-nos no fim da carruagem, em último lugar e cuidávamos amorosamente que o percurso daqueles que nos foram confiados, se realizasse sem percalços.

E isso parecia bastar

Mas eis que chega o momento em que nos apercebemos que, além de nós, não existem mais passageiros. Cada um abandonou a carruagem no seu ponto certo.

Então sentimo-nos sós, uma carcaça vazia, demasiado grande para nós e, mesmo que esta continuasse rodando, não entrariam novos passageiros, e os que entrassem, não nos viam.

É tempo de iniciar uma nova viajem, sem medo. O medo já não existe. Irei só com a vida como companhia,  levar-me-ei  nesta nova passagem, porque, no fim, só fica um.

Os medos

O triângulo

De algo novo, um pequeno excerto:


" Durante uma das suas caminhadas pela cidade, Francisca pensou ter visto um encontro de olhares, diferente, entre a Maria da Luz e um jovem com quem se cruzaram. Olhou discretamente para a jovem e reparou no rubor que lhe invadia o rosto.
O seu coração ficou gelado de medo. Quase chorou. Não! Elas não podem gostar de ninguém! Só de Deus, nosso Senhor, e de mim! Elas são minhas!
Então deu início a uma nova cruzada, desta vez contra os homens, dando milhares de exemplos de como essa espécie não valia a pena.
Contou-lhes a sua versão da vida de Santo António de Pádua, o santo português. A história começava certinha: aquele que viria a ser Santo António, chamava-se, na verdade, Fernando Bulhões. Pertencia a famílias da nobreza e estava a ser preparado para ser cavaleiro do rei.
Mas António, ou Fernando, era muito devoto e preferiu, contra a vontade da família, ingressar na ordem dos Agostinianos, inspirada em Santo Agostinho.
No entanto, ele desejava uma vida ainda mais humilde e despojada e ingressou na ordem dos Franciscanos, conhecidos por andar descalça e vestidos como indigentes. Nesta congregação dedicou-se a espalhar a palavra de Deus. Mais tarde partiu para Itália, mas ali os homens não queriam escutar as suas palavras, contudo, ele não desistiu, e começou a falar da palavra de Deus aos peixes.
Consideraram-no louco, até terem visto os peixes, à beira do mar ou dos rios, ouvindo, de boca aberta, os seus sermões. Devido aos jejuns exagerados, António morreu jovem e ao constatarem, anos depois, que a sua língua estava intacta, fizeram desta um relicário venerado e chamaram-lhe Santo António de Pádua. Eis um santo com duas nacionalidades.
Até aqui, parece certo, isto é o que conta a Santa igreja Católica Romana. Mas Francisca acrescentava à história do Santo aquilo que queria transmitir às meninas. Segundo ela, António ( ou Fernando) era um homem muito belo, razão pela qual era desejado e perseguido pelas mulheres. Ele fugia delas como o Diabo da cruz.
Para evitar cair em tentação vestia-se de farrapos, não se lavava, as barbas crescidas estavam sujas, e chegou ao ponto de enfarruscar a cara com carvão, para se tornar ainda mais desagradável. Esta era a versão de Francisca.
Como resultado de muitas conversas sobre este e outros assuntos semelhantes, em que a beleza levava ao pecado e como consequência, ao Inferno, as pequenas tentaram ser cada dia mais humildes, desejando que a sua beleza fosse vista apenas pelo Senhor e invisível para o mundo.
Os lindos cabelos, longos e ondulados, foram repuxados e presos na nuca, rematando-os numa austera trança sem nenhuma pretensão. As roupas, já de si bastante simples, foram-no ainda mais.
Uma saia simples, franzida ou com pequenas pregas na cintura, de tecidos de cores suaves ou neutras, florinhas ténues ou risquinhas claras, sempre abaixo dos joelhos. Blusas camiseiras, manga curta ou comprida, nunca manga à cava, onde o único toque feminino eram os botões e os bolsos à altura do peito. Folgadas, as camisas eram metidas por dento do cós.
Calça comprida, nem pensar! Embora Francisca considerasse que era preferível usar calças, desde que não fossem muito justas, acompanhadas de um casaco que ultrapassasse as ancas, do que uma saia muito curta, isto é, que deixasse à mostra os joelhos. Mas as meninas não gostavam de as usar, preferiam as saias.
E, como não podia deixar de ser, todas as peças tinham que ser iguais para cada uma delas. Deviam poder continuar a ver-se como num espelho quando olhavam uma para a outra. A pesar de todos os esforços para se tornarem menos atraentes, essa simplicidade aumentava o seu mistério e dava-lhes uma beleza etérea, quase angelical.
Com vinte anos pareciam ter a frescura dos treze. A sua pele nunca acusou os inconvenientes da puberdade, nunca tiveram borbulhas ou acne, ao contrário dos irmãos mais velhos. Até a sua voz, aquele tom infantil, haviam de mantê-lo durante toda a vida.
As meninas idênticas sabiam que a gula também era um pecado. Na sua luta por alcançarem a santidade, a perfeição, limitavam o mais possível a sua alimentação. Contrariavam os seus desejos de comidas apetitosas, ou mesmo os doces, chegando a sentir fome e sentir-se felizes por não cederem à vontade de comer.
A sua magreza era notória, ao ponto do padre da igreja que frequentavam ter chamado Francisca, preocupado com as meninas.
- D. Francisca, as suas meninas estão muito magras, já pensou ir ao médico com elas? Podem estar doentes. Tenha cuidado...
Mas Francisca não recebia bem nenhum tipo de crítica ou intervenção na sua vida, e era perita em ironia. Olhou para o sacerdote de alto a baixo - ele era conhecido como um bom garfo e a sua barriguinha proeminente era a mostra do seu vício.
- Sr. Prior, morre mais gente por comer em excesso- disse, enquanto fixava o ventre do homem – do que por comer parcamente. Nosso Senhor Jesus Cristo jejuou durante quarenta dias e não morreu. Também Santo Antão e muitos outros santos fizeram rigorosos jejuns. O jejum ajuda a encontrar a santidade e a desprender-nos dos bens terrenos. Já pensou nisso? Não se preocupe, as minhas meninas estão bem, saudáveis e felizes! – Rodou sobre os calcanhares, de nariz empinado, deixando o pobre sacerdote cheio de remorsos, olhando para a sua barriga.
De facto, as gémeas pareciam felizes, brincavam como crianças, não tinham quaisquer obrigações, a não ser as orações, cumpridas rigorosamente.
Aqueles três seres viviam numa bolha impermeável onde não entrava nenhuma influência do mundo exterior, mundo este que elas julgavam severamente, e do qual se afastavam quase com horror.

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